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A vida não cabe em caixas

Moro em um bairro de Belo Horizonte onde a presença dos mais velhos desenha a paisagem cotidiana, e sempre que o tempo permite, gosto de trocar um papo ou outro. No meu caminhar diário, indo ao mercado, à frutaria, às lojinhas locais, aprendi a reconhecer que cada rua é feita também das histórias de quem a habita.

De uns tempos para cá, percebo que algo se repete diante dos prédios: caixas organizadas nas calçadas, repletas dos mais variados objetos: revistas, fotografias, pequenas esculturas, medalhas, potes… fragmentos de uma vida.
Alguém sempre comenta: “É de fulana, que se foi.” E esse “se foi” pode significar tanta coisa… mudou de casa, foi morar com os filhos, foi para uma instituição, ou simplesmente partiu deste mundo. Partiu.

Essas caixas me detêm. Paro por um instante e deixo que minha curiosidade olhe para elas como quem contempla um retrato. Penso em como uma vida inteira poderia se resumir naqueles recipientes de papelão, mas também em como não cabe. Porque o que realmente fica, o jeito de ser, o gesto, a palavra, o toque, a presença; aquilo que se viveu e sentiu, não se encaixota.

Talvez seja porque a vida, no fundo, não caiba nas coisas. O que nos ocupa mais profundamente não é palpável: a forma como alguém nos afetou, a palavra que nos sustentou, a emoção que se experimentou, a presença que nos aqueceu e acolheu.

As caixas apenas nos lembram de que estamos por aqui de passagem. O que permanece é o modo como habitamos o nosso mundo e o mundo do outro. São essas marcas que permanecem vivas, mesmo quando já não estamos mais.

E talvez seja por isso que o importante seja viver buscando ocupar os verdadeiros espaços, aqueles que não podem ser encaixotados, mas vividos, sentidos e compartilhados.
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Dalissa Vieira é psicóloga, supervisora clínica e coordenadora do Centro de Psicologia Humanista de Minas Gerais. Especialista em Psicologia Clínica (UFMG) e em Saúde do Idoso (PUC-PR), dedica-se a acompanhar travessias humanas, com foco nas experiências do envelhecer e do viver com sentido.

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